hot off the press: de Flap Bag para Flop Bag
Como um tarifaço transformou fabricantes chineses em delatores de um escandalo gigantesco no mercado de luxo.
Vamos falar do exposed chinês sobre a cadeia de produção das marcas americanas e europeias, da fábrica da Chanel - que mais parece uma fábrica da Mercedes e do fenômeno Becca Bloom. Mas, se for pra fazer compilado de “cinco coisas que você precisa saber”, daria pra ficar na outra rede - aqui, a gente vai desenrolar um bom pedaço antes de chegar nas atualidades.
Sou frequentemente impactada por essa moça no meu Tiktok, a artesã Juliana Mendes. Ela desenha e costura suas bolsas. Entre os materiais, couro de boa qualidade e um bambu semelhante ao da Gucci. Usa luvas de pelica em seu processo manual, embala suas bolsas em cases estruturadas, revestidas de veludo vermelho. Um “luxo”, certo?
Bom, para os comentaristas dos vídeos, não. Apesar de utilizar os principais códigos que dão legitimidade a um artigo de luxo, Juliana não consegue a aceitação da massa no Tiktok - que bate palmas para itens bem menos complexos, quando exibidos por grandes influenciadoras. As critícas? A logo escolhida pela marca, as imagens de IA geradas pela criadora, o estilo de algumas das bolsas e a comparação com preços em lojas de departamento e feiras.
Por que?
Porque o luxo exige mais do que códigos de preço e de material. Ele engloba outras esferas. Vamos começar falando das transformações que esse mercado passou:
🪄 1900 e bolinha - IMAGINATION
Você já parou pra pensar que até muito pouco tempo, falando de sociedade, não existiam marcas? Os móveis da corte Luís XIV não tinham marca, os vestidos de Maria Antonieta também não. No século XIII, quando Marco Polo trouxe a porcelana chinesa para a Europa, ela se tornou um símbolo de riqueza e poder - mas também não tinha marca. O luxo estava atrelado ao quão raro era aquele produto, ou quão especialista era seu produtor.
Até 1980, o luxo era domínio exclusivo de consumidores experientes e conhecedores (Chandon, Laurent, & Valette-Florence, 2016). A transformação do setor ocorreu entre 1980 e 1995, quando emergiram os grandes conglomerados: LVMH, Richemont e PPR (atual Kering).
🪄 1980 - EXPANSÃO
Estas grandes corporações adquiriram maisons tradicionais como Cartier, Givenchy e Christian Dior, marcando a transição da gestão familiar para um modelo corporativo, com práticas administrativas modernas, reports anuais, exposição na bolsa e sede de resultados - já explicamos isso aqui.
🪄 2000 - GLOBALIZAÇÃO
A globalização expandiu as fronteiras do luxo, que se tornou mais acessível (Silverstein & Fiske, 2005). Os anos 2000 foram marcados pelo hedonismo e consumo conspícuo (Veblen, 1899), com as marcas diversificando seus negócios através de estratégias de extensão de marca (Kim & Lavack, 1996) para áreas como hospitalidade e turismo (Saint-Marie, 2015). E também expansão de marca, com grifes lançando suas linhas de móveis, óculos, maquiagens e bolinhos.
🪄 2022 - PÓS-PANDEMIA
O setor superou a crise de 2009 e alcançou números recordes até 2023. No contexto pós-pandemia, as marcas de luxo enfrentam o desafio de manter sua relevância, adaptando-se a novas formas de interação com o consumidor. O que não é simples, pois o algoritmo Tiktok e a crise tarifária do Trump não estavam previstos quando as grifes resolveram investir em suas presenças online.
Tá, mas o que isso tem a ver com a percepção da marca de luxo?
A coisa mais importante até aqui, é entender esse clique de mudança - do produto de luxo, para a marca de luxo. Minha orientadora do doutorado sempre mostra um item icônico: o algodão da Chanel. São 25 doláres por uma caixinha de papelão com quadradinhos de algodão pra tirar a maquiagem.
Um algodão de boa qualidade? Claro.
Um produto de luxo? Tenho minhas dúvidas.
Uma consequência de quando passamos a colocar valor na MARCA e não no PRODUTO. Mas, como isso acontece?
Um autor que eu gosto muito pode ajudar: 🪩 Em "A Distinção" Bourdieu apresenta as diferentes formas de capital que operam na sociedade. O econômico ($$$), cultural (conhecimentos, diplomas) e social (relações, redes). Tem um quarto capital, que é o Capital Simbólico - mas na verdade, ele não é um quarto, porque ele não é um tipo separado, mas sim como os outros capitais são percebidos.
Um exemplo bem didático
Um caso relativamente comum aqui no Brasil é o de blogueiras tentando lançar marcas de maquiagem como produtos de luxo. Algumas tentaram por conta própria, outras fizeram parcerias com marcas grandes de cosméticos, mas ninguém conseguia o patamar “premium”. Até a Victoria Ceridono lançar a ✨ Vic Beauté.
Não era “só uma blogueira lançando uma marca”, era uma combinação de capitais!
Vic Ceridono nasceu e cresceu em São Paulo. Ainda adolescente, frequentava o São Paulo Fashion Week. Conheceu grandes nomes do jornalismo fashion, como Gloria Kalil e Lilian Pacce. Foi contratada por Gloria Kalil como estagiária do site Chic. No mesmo ano fundou seu blog, Dia de Beauté. Um ano depois, foi convidada para fazer freelas para a revista Vogue. Daí, veio um vasto capital cultural e por quase uma década, Vic foi editora de beleza da Vogue no Brasil. A maior referência de autoridade no assunto. Ela compartilhava um pouco da sua vida privada nas redes, os acessos a grandes marcas e maisons, os produtos para review e as rotinas de skincare.
O lançamento da marca e maquiagem foi um sucesso. Poucos produtos, versateís, uma embalagem que não parece com a de outras blogueiras, colaboração com marcas como Gallerist (que apenas o público do Cidade Jardim frequenta) e pop-ups em shoppings de luxo.
Estou dizendo que foi simples? Óbvio que não. Posicionar uma marca no segmento de luxo no Brasil é uma tarefa Hercúlea e merece um post próprio. E existem dezenas de exemplos que tiveram tantas o mais oportunidades do que a Vic e não construiram nada parecido.
Mas, você nota a diferença de acessos que ela teve crescendo em uma família influente em São Paulo, em comparação com a Juliana Mendes que atua em Bezerros, Pernambuco? E que, mesmo se as duas tivessem lançado suas marcas com o mesmo valor de investimento, no mesmo ano, esses acessos “intangíveis” mudam toda percepção para construir o capital simbólico, que define o sucesso no mercado de luxo?
HIATUUUUSSSSS:
1. Um tipo de capital pode te ajudar a conquistar ou acessar outro, eu resumi de forma básica. Mas, em alguns casos sua classe social, origem ou forma de obtenção de determinado capital, nunca vai te deixar ter o capital simbólico. Aquele papo do “é rico, mas não de berço, é emergente”, sabe?
2. Peço desculpas ao Clube de Leitores Bourdieusanos, espero não receber uma tamancada não simbólica pela explicação simplista.
Agora, podemos ir pra sequência de estrago
Esse vídeo aqui foi publicado no dia 2 de abril pela WDD em colaboração com a Chanel. A ideia era mostrar o “incrível processo de produção” de uma das bolsas mais íconicas da marca. Deu ruim, o vídeo mais parecia uma fábrica da Mercedes e o público ficou revoltado - a Chanel deixava claro que o seu processo de produção era híbrido, mas ninguém imaginava que a parte humana fosse quase nula.
Foi um fiasco nas redes. A Chanel removeu o vídeo em poucas horas e a WDD substítui o vídeo por imagens de artesãos, rs.
O preço da Classic Flap experimentou um aumento celestial de 86% desde 2019 – de $5.800 para surreais $10.800. Uma manobra para navegar nas águas da Hermès e sua Birkin (que viu um aumento mais discreto de 21%). Mas, como justificar uma comparação com a Birkin – feita por um único artesão do início ao fim – quando se revela um processo que flerta abertamente com a produção em massa?
Bom, nem deu tempo da Hermés gargalhar na desgraça da concorrente…
Na madrugada do último domingo, fabricantes chineses resolveram expor suas fábricas em represália ao tarifaço do Trump:




Link dos vídeos aqui, aqui e aqui.
E as acusações são gravíssimas, tá?
🪩 Segundo eles, 80% dos itens de luxo são fabricados na China. A única coisa que eles não fazem é colocar a etiqueta - a marca é quem coloca no país de origem, pra alegar que foi "made in France" ou "made in Italy";
🪩 Também falaram que uma bolsa Hermés que custa $38000 é adquirida por $1000 pela marca;
🪩 Ainda jogaram na mesa que eles ganham tão pouco dinheiro com as marcas de luxo, que o que movimenta a econômia de fato são as superfakes.
“Aihn, mas todo mundo sabia que as coisas vinham da China!”.
Sim, componentes. Partes do processo. O que eles estão mostrando nos vídeos é uma cadeia INTEIRA de produção - inclusive, ESSE AQUI com móveis da Hermés é absurdo.
Entraram na roda marcas de luxo europeias, mas também grandes marcas de masstige, como Nike, Adidas, New Balance e Lululemon. E mais, estão dando os links pra você comprar os produtos (não através de Shein e Alibaba, mas diretamente com as fábricas) - nunca aconteceu nada parecido e nenhuma grande marca se posicionou até o final dessa reportagem, rs!
Quando marcas expandem loucamente suas produções e linhas, tiramos um pouco do luxo o seu Grau de LUXUOSIDADE (Bernard Dubois, 1976).
Quando criamos collabs com outras marcas, que são MASSTIGE e não luxo, tiramos mais um pouco.
Quando substítuimos artesãos e materiais raros por processos fabris e terceirizados, tiramos um pouco do luxo o seu Grau de RARIDADE (Kapferer, 2009).
O que sobra para o luxo, dentro da moda, sem a raridade, a luxuosidade e com uma mudança geracional onde o Consumo Conspícuo - aquele que você compra para mostrar que tem (VEBLEN, 1899) - está cada vez mais cafona?
Por enquanto, sobra migrar:
EPÍLOGO
Um brilhinho de Van Cleef no fim do túnel
Lembra dos capitais, que discutimos no começo desse post?
Pois bem, temos uma nova bilionária nas redes, que dá algumas possibilidades para o mercado de luxo seguir operando dentro da moda.
A moça chama-se Becca Bloom, nascida nos EUA, herdeira de uma fortuna bilionária da Camelot System Information — empresa de softwares criada por seus pais — começou sua trajetória online discretamente em janeiro e já atingiu 1.5M de seguidores no TikTok.
Sua rotina digital é uma cartografia dos espaços mais exclusivos do mundo: eventos privados "top clientes" da Dior sem presença de mídia; sessões personalizadas onde desenha suas próprias bolsas Hermès; preparativos meticulosos de seu casamento, com convites manufaturados individualmente por um ilustrador renomado.
Ela transforma sua riqueza (capital econômico) em um estilo de vida estetizado que é percebido como sofisticado e distintivo (capital simbólico). Tem questões, claro - ela oculta as condições materiais que tornam esse estilo de vida possível e apresentando-o como resultado de “escolhas pessoais” e “qualidades individuais”.
Vestindo conjuntinhos meticulosamente coordenados, tomando matchá em ambientes minimalistas e discursando com segurança sobre metas e propósitos, ela não apenas exibe riqueza — ela codifica uma hexis corporal específica, um conjunto de disposições que Bourdieu chamaria de habitus de classe. Este habitus se manifesta como aparentemente natural, quando na verdade é produto de condições materiais específicas.
Becca é uma evolução sofisticada na performance do luxo nas mídias: não é apenas a exibição ostentatória de bens materiais, mas a transformação de um privilégio estrutural extremo em uma aparente "filosofia de vida" potencialmente alcançável. A verdadeira sofisticação de sua estratégia está em como ela converte vantagens estruturais incomparáveis (tempo livre ilimitado, acesso irrestrito a recursos, ausência completa de preocupações financeiras) em um "estilo de vida" que aparenta ser meramente resultado de escolhas pessoais, disciplina e uma estética refinada.
ACABA, PELO AMOR DE DEUS…
O resumo é: não basta vender produtos exclusivos - as marcas agora precisam criar universos completos e coerentes, onde cada item se insere em uma narrativa aspiracional que vai do matchá matinal à bolsa Hermès (a feita na França).
E sabe um outro caminho pra isso? ARTE. Já rola faz um tempo, agora vem cada vez mais forte. Vou linkar três coisinhas aqui, mas podemos falar disso na próxima news ;)
📄 Gupta, M., & Joshi, R. M. (2023). Art infusion phenomenon: a systematic literature review. Journal of Product and Brand Management, 32(2), 235–256. https://doi.org/10.1108/JPBM-04-2021-3441
📄 Gupta, M., Das, G., Septianto, F., & Hagtvedt, H. (2023). The impact of scarcity cues on purchase likelihood of art-infused products. Journal of the Academy of Marketing Science, 1-19
📄 O Clube do Livro da Miu-Miu
Um brinde, e boa sorte encomendando sua Define Jacket Nulu por U$10 no revendedor chinês oficial da Lululemon!
Quem abriu as portas dessa dimensão de revelações foi nossa Tânia Bulhões. Ela mudou a rotação do luxo na Terra e agora é daqui pra pior.
Esse post está tão bem construído que me trouxe uma felicidade genuína, parabéns pelo empenho e trabalho impecável! ♡